Jane Gomes
7 min readMar 11, 2022

EU, POESIA

Eu tinha 5 anos, lembro de receber os primeiros livros didáticos da minha vida escolar. Euforia é um termo simplório para o frenesi de todas as crianças da Escola Estadual Monsenhor Alfredo Pegado, escola primária da comunidade de Mãe Luíza, zona leste de Natal. Era raro termos acesso a histórias em quadrinhos e literatura infantil, então os livros didáticos nos proporcionaram um pouco disso. No embalo dos livros escolares, comecei a reproduzir as imagens deles, minha mãe, que também adorava desenhar tudo que lhe vinha à cabeça, principalmente imagens do universo Disney, elogiava, dizia que estavam ótimos, perfeitos. Eu, como criança, amava isso. As cópias foram ficando a cada dia melhores, e com a prática, incentivada pela minha mãe e avó, pude ir aperfeiçoando até chegar no ponto de reproduzir imagens que vinham a minha cabeça, mas apesar disso, eu sentia que não estava bom já que não se pareciam com as imagens dos livros. Eu não tinha lápis de cores, não tinha folhas específicas, e tudo que eu fazia me sentia péssima quando comparado às imagens e desenhos que via de outros artistas. Coloquei na minha cabeça que não era uma artista de verdade, afinal eu “só” sabia copiar arte dos outros e não curtia e não mostrava para mais ninguém as minhas artes autorais.

Em meados de 2013, concluí o ensino médio, e senti que precisava cursar artes visuais para me sentir confiante com a minha arte. Naquela época eu era uma garota que sofria muito com acne e sobrepeso. Tinha vergonha do meu corpo, do meu cabelo, tinha vergonha de mim. Não me cuidava além das necessidades básicas. Não sabia me cuidar. Achava que nada iria mudar. Após o SISU de 2014, quando percebi que havia passado, não percebi os problemas que iriam complicar esse processo. Não conseguia ir às aulas, não me sentia motivada ou faltava passagem. Inúmeras foram às vezes em que pedi dinheiro emprestado para ir às aulas ou em que fui a pé. Minha família não me apoiava como deveria, o foco principal sempre foi a alimentação. Apesar de ser a primeira pessoa da família a entrar numa graduação, aquilo não tinha muito valor para os meus quando a educação nunca foi ensinada como necessidade básica. Tínhamos que nos alimentar. Nesse mesmo ano, no bairro de Mãe Luíza, aconteceu o deslizamento de terra que deixou diversas famílias sem casa devido às fortes chuvas da semana, e de alguma forma, eu senti que tinha a responsabilidade de ajudar naquilo. Eu estava militando na época pelo transporte gratuito na cidade, estava cheia de ideias, queria abraçar o mundo. Começara a escrever em um blog já havia um tempo, e com a escrita muitos desenhos me vinham à mente com uma frase ou uma palavra, parecia que as duas coisas tinham se entrelaçado e para mim, estavam interconectadas. Comecei a produzir o projeto Mãe Resistência. Eu não sabia o que era produzir, não sabia o que se precisava para construir um evento, foi tudo sendo amarrado com idas e vindas a pé atrás de alguém que ajudasse de alguma forma. Construí o evento durante 3 edições, que se resumiam em uma mostra artística de artes de diversas esferas com arrecadação de suprimentos para os desabrigados da chuva. Não consegui mais apoio, o evento estagnou.

Na época eu estava andando com uma galera punk, mas mal sabia nada sobre nada. Eu achava que ali estava sendo aceita e me envolvi com um homem mais velho. Escrevia poemas para ele, rabiscava desenhos românticos. Com 18 anos eu nunca tinha transado na minha vida, mas isso eu não contei a ele. Logo depois da nossa primeira vez, ele foi se afastando de mim. Durou apenas alguns meses. Nesse período fiz de tudo um pouco, achava que liberdade era fazer o que me vinha à telha. Mochilei para alguns estados, sofri diversos abusos nesse período que só percebi serem abusos atualmente, depois de quase 9 anos.

Em 2015, o meu primo faleceu. Foi desolador. Ele foi criado comigo e durante anos me protegeu de tudo. Ele havia sido morto pela polícia numa tentativa de fuga para outro estado. Foi muito difícil para todos nós, já que não o víamos fazia cinco anos, e agora tínhamos que enterrá-lo. Nesse mesmo período, conheci uma moça e fomos morar juntas, abandonei o curso de artes visuais e comecei a tatuar. Achava que seria feliz longe da violência e lembranças que me angustiavam. Mas então, a diferença de classe e o bairro de onde eu vinha pesaram muito no nosso relacionamento. A família nunca aceitou. Durante anos precisei me esconder no banheiro quando minha sogra chegava. Não percebi a violência que isso era. Não contava às pessoas, achava que eu tinha que passar por isso mesmo. Fui observando os meus desenhos, e naquela época comecei a escrever em um outro blog, como anônima, ideias e pensamentos que me vinham. Iniciei a pintar em telas e a usar aquarela, de alguma forma, a transparência da aquarela dialogava com aquilo que me cercava. Eu não estava sendo transparente, não estávamos sendo transparentes, e era justamente de transparência que eu precisava. Meus desenhos foram ficando cada vez mais subjetivos. Escrever e desenhar tinham se tornado os meus refúgios. Através da escrita, fui conhecendo outros poetas e admiradores das artes, pessoas que me incitavam a não desistir e fui escrevendo mais e mais. Concomitantemente, em 2017 tinha acabado de ingressar em Produção Cultural, quando fui convidada para escrever numa publicação coletiva de autoras mulheres, todas as pessoas eram conhecidas e pessoas que admirava. Era um verdadeiro sonho pois era a primeira vez de todas nós. Tudo foi feito muito às pressas, com coisas que me angustiaram durante o processo, mas estávamos tão agradecidas, que não reclamamos. Aceitamos. Eu aceitei.

Nesse mesmo período, aconteceu um episódio que mudou muito a minha vida e a minha arte, eu estava entrando em depressão. Não percebia, achava que meus problemas em me comunicar, minha falta de vontade de sair e a aflição se devia a minha pressa em concluir o curso. Tudo veio a piorar quando uma violência machista atingiu a mim e algumas pessoas à minha volta. Fui colocada como culpada e fofoqueira quando relatei a situação. Me senti extremamente frágil e sem saber o que fazer. Vieram crises de ansiedade, achava que estava sendo perseguida. Tremores me invadiam a noite, sonhava coisas bizarras e ninguém entendia. Eu precisava me manter firme e aguentar todos os olhares das pessoas que sabiam de tudo, e ficaram ao lado dele. Eu sentia que ninguém se importava. Fui deixando tudo de lado, tranquei a faculdade, a única coisa que sabia fazer era escrever pois achava que ninguém me ouvia. O comum da depressão é todos irem se afastando de você. As pessoas que amava foram se distanciando porque naquele momento eu era uma pessoa que só reclamava e não saia do lugar. Eu estava entorpecida de remédios, e precisava que me ajudassem a pagar; para as pessoas, eu havia virado um prejuízo. Foi assim que me sentia. Ninguém realmente entende a dor psicológica que o outro sente até que sinta algo semelhante. Após internações, conflitos familiares e tentativas de suicídio, posso dizer que construí muita coisa através da hipersensibilidade que se tem quando está com depressão. A necessidade de comunicação é o motor humano, e através da arte eu comunicava o que sentia. Através da arte eu vomitava tudo. Nesse período, aos trancos e barrancos, fui convidada por Rosy Nascimento a integrar o coletivo de cinema Negro Mulungu Audiovisual, realmente, posso dizer com toda a certeza que foi a minha experiência profissional mais sólida. Com o Mulungu pudemos trazer, para exibição gratuita, o filme Africano Rafiki, e no mesmo ano realizar a Mostra Cinema em Movimento, que acontece em todo o país e discute direitos humanos nas escolas públicas e privadas. No final desse mesmo ano, em 2019, o Mulungu foi convidado a produzir a primeira mostra de cinema voltada só para obras produzidas por mulheres, a Mostra Macambira. A Macambira foi um sucesso, mais de 200 filmes de todo o país inscritos, a produção estava muito empolgada com as possibilidades. Ao alvorecer de 2020, a pandemia assolou o mundo, colocou todos os planos em cheque, muitas pessoas morreram. Pessoas ao meu redor morreram. E novamente o fantasma do assédio me assombrou, e mais uma vez fui colocada como culpada. Eu sentia que morria todo o dia. E o fantasma se repetiu, até culminar novamente em internação. Certa vez na ala feminina do João Machado alguém tinha escrito no canto superior da parede "como que faz para dormir?", e isso nunca me saiu da cabeça, porque por mais que seu corpo esteja tão morto de drogas tranquilizantes, a cabeça não pára, não dorme. Quando voltei para a casa da minha mãe e avó, senti acolhimento, mas ainda me sentia morta. Escrevi e desenhei muito, mesmo não sabendo para quem mostrar. Alguns meses depois tentei com todas as forças criar coragem nem que fosse só para ganhar dinheiro. Precisava me sustentar sozinha. Consegui novamente voltar a tatuar, voltei a estudar, fui morar só. Em 2021 conheci Catarina Catão pessoalmente, ela era uma artista que admirava online já havia um tempo, e através dela pude conhecer melhor o Grafiti e o muralismo. Ela me encorajou e me guiou nesse processo, me acolheu, e a paixão pelo grafite foi instantânea. Consegui através da pintura em parede mostrar meus rabiscos para as pessoas sem precisar mostrar o meu corpo ou virar uma blogueira como praticamente tudo hoje em dia precisa ter para ser reconhecido. Em 2021, participei de projetos enquanto produtora juntamente com Catarina Catão, mas não somente. Conseguimos realizar, ainda que online, a segunda mostra Macambira, assim como participei da construção da primeira mostra de vídeo de Natal. Nesse mesmo período lancei o meu segundo zine, Poesia Suspeita, através da oficina zinelandia, realizada pela anzóis produtora. Atualmente ainda estou concluindo o curso de Produção Cultural, concluindo o TCC em que trago a questão do apagamento do poeta Edgar Borges, Black Out, para a literatura potiguar. Sigo pintando as paredes da minha comunidade, ensinando desenho às suas crianças, para que pensem por si, vejam o quanto a arte pode mudar a sua vida, e não falo aqui sobre mudanças financeiras, mas em relação a sentido de vida mesmo. Meu projeto de vida hoje é fazer de Mãe Luíza um lugar melhor através da arte, pois quando me senti só, ela foi a única a me abraçar. Eu quero repassar para as outras crianças que elas nunca estarão só tendo papel e lápis para começar uma construção.